Confesso que o texto do prezado colega Pinzani me produziu sentimentos contraditórios. Por um lado, fiquei feliz ao descobrir que a tocha do debate tinha sido recolhida. A UFSC – e não apenas ela, mas a ampla maioria das universidades brasileiras – requer com urgência um debate aprofundado sobre o sentido e objetivos da universidade, no atual momento do Brasil e do mundo. Mas por outro lado me deu um certo desconcerto, tamanha minha expectativa em debater questões mais de fundo e menos discursivas.
No meu texto pautei diferentes elementos necessários para compreender o processo pelo qual a UFSC passou. Vamos resgatar alguns: 1. falei do resultado da última eleição, explicando o porquê de ter ganho quem ganhou e as razões de ter perdido quem perdeud+ 2. coloquei em questão o “faz de conta” do sistema eleitoral adotadod+ 3. problematizei a relação política como algo que hoje se apresenta a partir da lógica de uma relação amigo-inimigo que, embora inevitável, deve ser limitada, na medida em que leva para a guerra e destruí a comunidade e as instituições da democraciad+ 4. trouxe a tona o tema da produção de conhecimentos e do ensino e extensão, que dever se dar dentro do mais alto padrão de excelência possível, como objetivos principais e permanentes da universidaded+ 5. comentei que as relações no interior da comunidade universitária não podem ser confundidas com as relações da família, da empresa ou dos cidadãos de um Estadod+ 6. falei da complexidade de relações que combinam hierarquia num sentido, com igualdade em outro… etc. No entanto, o ponto eleito pelo meu colega para promover o debate foi algo que não escrevi nem sugeri. E, para pior, fui acusado de um pecado banal. Declaro então, solene e preliminarmente, a minha inocência diante a acusação.
Não posso, portanto, atender a seu pedido cordial de rever minha posição, porque essa que ele declara ser minha, não é – e apenas me foi atribuída por conta de causas que tratarei de esclarecer mais a frente. A rigor, o que mais me desapontou não foi tanto o fato de ser acusado por um delito que não cometi, mas de ter pautado tantas coisas vitais para a universidade, que ficaram no esquecimento quando meu debatedor se concentrou em uma questão praticamente diversionista. De que sou acusado? De defender a neutralidade ideológica na universidade. Mas como poderia? Essa acusação ofende a sofisticação que me é atribuída pelo colega em sua crítica. As pesquisas comprovam que até o inconsciente é influenciado pelas nossas ideologias conscientes. Para bem ou para mal, as ideologias são representações inevitáveis da realidade. A origem da confusão reside na crença de que as ideologias são de um único tipo, e, por conta disso, toda a realidade passa pelo filtro das ideologias políticas. Creio ser essa uma visão simplista e equivocada. Assim como as relações no seio da família não são as mesmas que aquelas no seio da igreja ou do Estado ou da empresa (tal como já expliquei no texto anterior), também existem diversos tipos ou formas de ideologias que não podemos confundir. No sistema político se destacam, obviamente, as ideologias políticas e ninguém poderia reclamar a neutralidade ideológica nesses termos quando se observa um partido político ou o Parlamento. No entanto, no sistema religioso, por exemplo, não são essas ideologias que se destacam, mas outras que são próprias dessa esfera. O mesmo vale para a universidade. Nem as ideologias, nem os poderes (como bem observou Aristóteles no momento fundacional da ciência política) são sempre os mesmos, nas diversas dimensões da sociedade e suas instituições. Eu achei que tinha pautado esses pontos de forma clara, mas vejo que pequei em algum ponto da minha exposição de idéias. Voltemos então ao assunto.
É um fato que as ideologias políticas penetraram as instituições universitárias (muito especialmente, as públicas). Mas isto é desejável? Eu digo que não é! Por acaso isto supõe uma reivindicação de neutralidade ideológica? Obviamente não! As ideologias sempre estão presentes, mas é desejável que essas lentes que, para bem ou para mal, nos filtram a luz da realidade, estejam sintonizadas o mais possível com a realidade específica que se vai abordar. Ao se reduzir o campo das ideologias ao das ideologias políticas (que, aliás, reduzido a um arco entre o neoliberalismo e a esquerda revolucionária me parece pobre demais), não se consegue enxergar o fato de que existem outros tipos de ideologias que são específicas da vida acadêmica. Embora com nomes que nada tem a ver com os de esquerda ou de direita, as ideologias e as revoluções não são fatos estranhos na vida dos cientistas, como bem estabeleceu Thomas Kuhn. Muitos colegas têm acompanhado minha longa luta pela interdisciplinaridade na UFSC (tanto em nível de graduação como de pós-graduação). Pois bem, essa luta eminentemente acadêmica esteve (e continuará) repleta de obstáculos ideológicos que não são precisamente de esquerda ou de direita, senão “disciplinares” e “departamentais”, entre outros. Se eu falasse em pró ou contra a interdisciplinaridade em termos de ideologias de esquerda ou direita não faria outra coisa que obnubilar mais ainda o debate.
Em um outro artigo, que publiquei no Boletim da Apufsc, não muito tempo atrás (nº 613, de 08/10/07), afirmei que as universidades públicas não podiam se de esquerda nem de direita. Não tanto porque seus membros docentes ou discentes tivessem ou não ideologias políticas, mas porque esse fato não ajudava a entender e operar sua realidade. Lá eu afirmava que a China produz anualmente 38% de engenheiros, sobre o total de diplomados, enquanto no Brasil esse valor chega apenas a 6%. A seguir me perguntava como interpretar esses dados. Com relação aos engenheiros, o caso brasileiro é exemplo de política de esquerda ou de direita? Do mesmo modo, o caso da China é de esquerda ou de direita? A conclusão obvia é que as ideologias políticas pouco servem para entender a universidade e promover reformas que a coloquem em sintonia com as necessidades do país que as financia (aliás, não acredito que a proposta de colocar à universidade em sintonia com as necessidades de desenvolvimento do país real seja reproduzir as “elites do país”, muito pelo contrário!). Se alguém quer ser de esquerda ou de direita, que seja, é um direito básico de cidadania. No entanto, enquanto membro da comunidade universitária e, muito especialmente, enquanto reitor ou professor, essa distinção ideológica não ajuda em nada – alias, tanto não serve que até um colega que apoiou a mesma chapa que o professor Pinzani, reconheceu que eu tinha razão (ver o Boletim da Apufsc no. 614).
A Chapa 2 do professor Prata, por exemplo, conseguiu atrair o apoio de professores, alunos e servidores que divergem em termos de suas ideologias políticas, mas não de suas visões de universidade. Esse fenômeno se instala precisamente no ponto cego da perspectiva do Professor Pinzani. Ele parece não ter observado o fato de que pessoas de ideologias políticas de esquerda e de direita podem compartilhar as mesmas idéias de excelência para a universidade. Curiosamente (pelo menos para alguém que usou os argumentos que usou contra mim), essa cegueira tem causas ideológicas. Meu colega fez a manobra fantástica de colocar seu pensamento no centro do espectro ideológico político. Ele diz que acredita numa via mediana entre a esquerda revolucionaria e o neoliberalismo, que ele entende serem duas expressões ideológicas extremas. Fazendo um exercício semântico poderoso (que acredito vai ter que explicar melhor a seu candidato), nos diz que o Professor Nildo não forma parte da esquerda revolucionária, “já que ele possui visões bastante radicais, sim, mas não extremistas” (sic). Que assim seja. Mas o que meu colega talvez não tenha percebido é que os apoios ao Professor Prata se deram a partir de um arco plural, que incluiu de forma equilibrada pessoas de ideologias de esquerda e de direita. Isso foi possível porque na Chapa do Professor Prata o mais importante não foi saber se as pessoas eram de esquerda ou de direita, mas se compartilhavam a mesma visão de universidade. Mas o mesmo não poderia ser dito dos que apoiavam a Chapa do Professor Nildo, lá todos eram de esquerda! (e, provavelmente, nem sempre compartilhando a mesma visão de universidade). As causas da cegueira que mencionava antes se encontram aqui. Para a esquerda que apoiou, junto com o professor Pinzani, a Chapa do professor Nildo, as convergências são possíveis no interior da ideologia política de esquerda. Por isso meu colega foi levado a concluir que eu defendia a neutralidade ideológica, porque para certa visão da esquerda, todas as relações sociais devem passar pelo filtro do pensamento político de esquerda, nivelando assim todas as instituições e fenômenos sociais, políticos e culturais. Para mim não faz sentido debater os problemas da família ou da universidade em termos de ideologias políticas, mas para o pensamento da esquerda tradicional parece que faz, sim.
Resumindo, a acusação que me foi feita de ser um suposto defensor da neutralidade ideológica na universidade não tem sua origem em meu texto, mas na cegueira “epistemológica” de certa ideologia política (que por certo não é a minha!). Infelizmente, meu colega não comentou nada sobre a parte final de meu texto. Ela foi introduzida previamente por um chamado de atenção para as conseqüências que traz maximizar na sociedade à lógica amigo-inimigo, típica da política. Tanto o radicalismo de esquerda como o de direita (que obviamente não tem nada a ver com a turma do neoliberalismo, mas a de Hitler e companhia) são responsáveis pelo uso desta lógica até o ponto de destruir as bases da sociedade (bases que Aristóteles identificava, tanto na família como na pólis, com o conceito de phylia, uma força unificadora das relações sociais baseada num sentimento próximo ao da amizade). Era isto o que não via Carl Schmitt, mas sim viu Leo Strauss, tal como comentei no meu artigo anterior (pensadores que o professor Pinzani deve conhecer bem). Basear as estratégias de ação na universidade a partir de ideologias políticas supõe diferenciar a cada membro da comunidade em termos de relações não de colaboração ou amizade, mas de inimizade ou disputa. A eleição do reitor da UFSC foi um momento político importante, mas foi muito mais importante no plano acadêmico que no político. É um fato que na UFSC os eleitores não guiaram sua escolha preferencialmente por ideologias políticas. Eu fico feliz com isso, mas suspeito que meu colega Pinzani não tanto. A avaliação que expus em meu texto dava conta de que as ideologias políticas penetraram no debate universitário mais do que deveriam. Prova disso, apontei no final de meu texto, foi a falta de reconhecimento por parte do professor Nildo da legitimidade do triunfo eleitoral do professor Prata. Após a disputa eleitoral, vencedores e derrotados devem enviar sinais da amizade e não de inimizade. Isso vale para a nação, mas vale muito mais especialmente, em função de seus objetivos, para a universidade. Finalizo então fazendo um apelo para a reconciliação além de nossas ideologias políticas, para que nossa comunidade possa agir em comunhão, diminuindo a inimizade e aumentando a amizade, de cara para o século XXI.