Em seu artigo A UFSC apóia a eleição (Boletim da Apufsc nº 620), o professor Héctor Leis defende uma visão de universidade que ele opõe à visão politizada e ideologizada do candidato derrotado nas últimas eleições para a reitoria, o professor Nildo Ouriques. Embora não compartilhe plenamente a visão da relação entre universidade e sociedade civil do professor Nildo, e embora minha posição política geral não esteja muito próxima da sua (embora eu o tenha apoiado nas eleições, assim como o professor Leis apoiou o outro candidato, o professor Álvaro Prata), não concordo com o professor Leis quando ele afirma que a universidade não é lugar de luta política e quando pretende defender uma visão dela neutralmente ideológica.
A afirmação da presumida neutralidade ideológica é ela mesma expressão de uma certa ideologia, a saber, de uma determinada concepção da sociedade e do papel da universidade nela. Segundo o professor Leis, a universidade teria como única tarefa a de produzir e ensinar conhecimentos específicos, mas ele não nos explica muito claramente qual seria a função de tal produção e transmissão de conhecimento. Há com certeza quem pense que se trata de uma atividade gratuita, que é fim em si mesma e é efetuada exclusivamente por amor à sabedoria e à ciência (scientia scientiae gratia, para parafrasear um célebre dito). Isso não me parece ser, contudo, o caso do professor Leis, que afirma que “a comunidade acadêmica deve refletir e decidir sobre os melhores meios que alcancem os objetivos do desenvolvimento econômico, social e cultural do país”.
Ora, é justamente no contexto de um tal debate que a universidade pode e deve discutir sobre sua relação com a sociedade e sobre seu papel nela. Isso foi (é) o que o professor Nildo tentou (tenta) fazer. Mas as conclusões às quais chega o professor Nildo não agradam ao professor Leis, que, portanto, o acusa de querer politizar a universidade. Por indução, somos levados a concluir que o professor Leis:
1 – considera politizada qualquer posição que veja na universidade uma instância de transformação econômica, social e cultural no país (isso, contudo, cria uma tensão com o que o próprio professor Leis afirma) e:
2 – considera não politizada a posição contrária àquela do professor Nildo, a saber, a visão que podemos chamar tranqüilamente de neoliberal, segundo a qual a universidade deveria preocupar-se primariamente em formar profissionais e segundo a qual a maneira melhor de a universidade contribuir para o acima mencionado desenvolvimento seria a de produzir e reproduzir saber – um saber, contudo, que não pode ser politizado, ou seja, não pode ver nela uma instância de transformação (parece uma variante do Catch 22 de Joseph Heller).
Ora, gostaria de questionar este último ponto, a saber, a presumida imparcialidade política de uma visão como a defendida (embora indiretamente) pelo professor Leis no seu artigo. Na minha opinião, uma tal visão é expressão de uma ideologia igualmente radical àquela de quem queira fazer da universidade o lugar de onde devem sair as forças que revolucionarão a sociedade. Se esta última visão peca em parcialidade por considerar só o aspecto mais imediatamente político da instituição universidade, a visão oposta peca em parcialidade por desconsiderar tal papel e achar que a universidade seja um lugar politicamente neutro, cuja única preocupação é produzir e reproduzir conhecimento.
A universidade, porém, é também o lugar de produção e reprodução da elite de um país – e sempre o foi, inclusive nas épocas antigas evocadas pelo professor Leis em seu artigo a fim de defender a peculiaridade de tal instituição. A universidade permite a organização dos saberes e o controle sobre eles (sobre a própria definição do que é considerado saber e do que não merece tal denominação), sobre sua transmissão (e o seu uso futuro por parte de quem o recebe), e sobre quem tem acesso a ele (o processo seletivo pode ser meritocrático, como no caso do vestibular, ou meramente econômico, como nos casos em que a universidade só é acessível para quem disponha dos meios financeiros necessários).
Nenhum destes processos de organização e controle é politicamente neutro, assim como não é indiferente a maneira em que o saber é apresentado aos estudantes. Se tarefa da universidade for somente a de formar profissionais (inclusive profissionais da pesquisa e do ensino, isto é, futuros professores), sem envolvê-los em discussões políticas sobre a sociedade e o papel da universidade nela, dela sairão indivíduos que não se consideram comprometidos com a sociedade na qual vivem (e que lhes permitiu formar-se gratuitamente). Indivíduos que, por conseqüência, não questionarão “o sistema”, do qual, antes, irão constituir a elite. Em outras palavras, a visão que presumidamente quer despolitizar a universidade, toma uma posição política bem clara: a defesa do status quo econômico, social e cultural.
Espero que seja possível encontrar uma via mediana entre a Cila das posições de certa esquerda revolucionária (da qual na minha opinião o professor Nildo não é parte, já que ele possui visões bastante radicais, sim, mas não extremistas) e a Caríbdis do neoliberalismo dos modernos seguidores de Pangloss, para os quais vivemos no melhor dos mundos possíveis, estamos inseridos na melhor sociedade possível e temos a melhor universidade possível (e as melhores fundações universitárias possíveis…).
Com certeza, não incluo o professor Leis nesta última categoria, já que ele possui um grau de sofisticação intelectual suficiente para não cair na armadilha da justificativa do existente. Contudo, gostaria de convidá-lo a rever sua posição segundo a qual a universidade seria um lugar politicamente neutro, pois ela nunca o foi e nunca o será.