O decreto 6.094/2007, que dispõe sobre a implementação do plano de metas Compromisso Todos pela Educação e o decreto 6.096/2007 que institui o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – Reuni, só podem ser compreendidos de forma conjunta, tendo em vista que seus pressupostos estão inextricavelmente associados.
Inicialmente, fica exposto no art. 2º do decreto 6.094/2007, que a principal bandeira do MEC é melhorar a qualidade da aprendizagem. No inciso II do mesmo artigo, comenta-se que a meta é alfabetizar as crianças até os oito anos de idade no máximo, verificando os resultados através de um teste (Provinha Brasil). Tal meta, sobretudo, atende interesses de organismos internacionais, “muito preocupados” com a baixa escolarização dos países da América Latina. O PDE (Plano de Desenvolvimento da Educação), que engloba todos os níveis de ensino do país, nesta direção, propõe várias medidas paliativas no combate à evasão e à exclusão de crianças e jovens em idade escolar.
Assim, em seu art. 2º, inciso IV, tal decreto defende a idéia de combate à repetência escolar, sem citar uma única linha sequer sobre as condições salariais e de trabalho dos educadores. Ora, diante de tal desafio, não seria o momento de se recompensar os educadores dos ensinos fundamental e médio com dedicação exclusiva (DE)? Até quando teremos neste país educadores/educadoras trabalhando em tripla jornada? Até quando o discurso da “missão”, do “apostolado”, da “vocação ingênua”, continuará se perpetuando no mundo do trabalho educacional? Além disso, e em consonância com as propostas do PDE – o MEC tem como meta reformular o programa Brasil Alfabetizado. Para tanto, entende que a participação dos educadores é fundamental na alfabetização de adultos, visando, inclusive a sua melhoria salarial. De que modo? Tomando como exemplo a região Nordeste, onde segundo dados do PNAD (Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar) 62% dos educadores das redes públicas trabalham 20 horas semanais e têm um turno livre, estes educadores completariam sua carga com tal função. Entretanto, não fica claro se estas atividades de docência serão incorporadas aos planos de carreira destes/as profissionais.
Já no inciso VII do art. 2º, comenta-se sobre a ampliação da jornada regular de crianças na escola, mas não estabelece de forma pontual como se daria a “integralização escolar”. Novamente, mais uma meta que foi levantada na LDBEN 9.394/1996 e que até hoje não é realidade em grande parte das escolas básicas brasileiras. Até porque, a escola integral para efetivamente funcionar, teria de apostar na dedicação exclusiva de seus educadoresd+ no inciso XIII do art. 2º defende-se o mérito, a formação e a avaliação do desempenho do/a educador/a. Porém, pairam muitas indagações: baseado em que parâmetros? Assiduidade? Produtividade? Evidente que a competência profissional do/a educador exige avaliação, mas tais critérios precisam ser fundamentados em conjunto com as comunidades escolares e com o apoio de estudantes, familiares e educadores, através de suas instâncias de deliberação coletiva (Conselhos deliberativos, Grêmios estudantis e APP – Associação de Pais e Professores).
O MEC pretende ainda levar às últimas conseqüências o estágio probatório dos/as educadores/as na Educação Básica, ou seja, de que a avaliação seja realmente qualitativa. Espera-se que tal ação não se transforme em breve na total instabilidade funcional do/a educador/a. No inciso XVII do art. 2º do decreto em análise, a figura dos coordenadores pedagógicos é incensada em prejuízo de outras habilitações, tais como supervisão e orientação escolar. Em Santa Catarina, por exemplo, temos nas escolas de Educação Básica os assistentes pedagógicos, profissionais vindos de diversas licenciaturas, com responsabilidades acima de sua formação inicial, executando atividades de polivalência nas escolas e, em determinadas situações, assumindo interinamente a direção da escola. Na seqüência, no inciso XVIII do art. 2º, não se defende a eleição direta nas escolas, até porque o poder de barganha estatal ficaria comprometido nos períodos eleitorais e o apadrinhamento político não se concretizaria através dos mal fadados cargos de confiança.
Além disso, se levarmos em conta que o decreto 6.096/2007, art. 2º, inciso II, aponta para a mobilidade estudantil e cursos com extrema flexibilidade no ensino superior (os chamados bacharelados interdisciplinares), ter-se-á em breve o retorno dos cursos de Licenciatura Curta promovidos pelas políticas educacionais do regime militar (1964-1985). Qual é o impacto desta formação para Educação Básica? Ora, o/a estudante ao escolher uma das áreas do conhecimento de seu interesse (Humanas, Artes, Tecnologia e Saúde) teria uma “formação geral” num período de três anos, ou seja, receberia a certificação de bacharel interdisciplinar. Com a obtenção dessa graduação generalista, flexível e/ou polivalente, o/a estudante teria de concorrer novamente (como num novo vestibular) a uma formação específica. Em outras palavras, ao se defender a terminalidade de uma formação precária em três anos, o MEC sinaliza em definitivo para a escolarização da graduação. Os péssimos resultados de aprovação no Ensino Médio público e sua má qualidade de formação, associados à falta estrutural de educadores neste nível de ensino, fizeram com que os engenhosos legisladores pensassem numa estratégia para “fechar esse buraco”. Um bacharel interdisciplinar custa pouco aos cofres públicos, pois é uma mão-de-obra barata e com uma qualificação duvidosa. Logo, tais “profissionais” estariam ocupando os cargos dos professores de História, Geografia, Sociologia, Filosofia, etc. Entendo que tal “engenharia curricular” afetaria, sobremaneira, as áreas das humanidades e, sobretudo, a qualidade da educação básica já tão combalida.
O inciso XXIV do art. 2º do decreto 6.094/2007 trata a matéria educacional de forma difusa, misturando-a com as áreas de saúde, esporte e assistência social. Indago se tal “confusão legal” não estaria criando brechas para o trabalho voluntário, descaracterizando cada vez mais o espaço escolar. Isto fica ainda mais nítido no inciso XXVIII do art. 2º: “Organizar um comitê local do compromisso [Compromisso Todos pela Educação], com representantes das associações de empresários, trabalhadores, sociedade civil, Ministério Público, Conselho Tutelar e dirigentes do sistema educacional público, encarregado da mobilização da sociedade e do acompanhamento das metas da evolução do Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica]”. Ainda que não esteja explícito, as parcerias entre o público e o privado estão cada vez mais presentes nas unidades de ensino públicas, através do protagonismo juvenil ou cursos de empreendedorismo infanto-juvenil coordenados pelo Sebrae. O Ideb, índice que será divulgado e sistematizado pelo INEP, terá como base de dados o Censo Escolar, as provas do Saeb e também da Aneb (Avaliação Nacional da Educação Básica), também conhecida como Prova Brasil. As unidades de ensino públicas que aderirem ao Compromisso Todos pela Educação e se comprometerem a atingir as metas exigidas pelo MEC através dos procedimentos de avaliação e análise, receberão mais recursos do Estado. Tal atitude, em meu entendimento, acirra ainda mais a competitividade, podendo mascarar dados de aprovação em função de benefícios orçamentários. Além do mais, o Estado é sempre mínimo quando tem de investir e máximo quando tem de controlar. Nesta direção, o que teremos é a perpetuação de um aceleramento progressivo de educandos/as e em contrapartida, a avaliação pedagógica poderá se tornar cada vez menos criteriosa.
Em seu art. 6º, o decreto assinala a instituição do Comitê Nacional do Compromisso “Todos pela Educação”d+ tal comitê poderá ser formado por representantes de outros poderes e também de organismos internacionais. Todavia, de acordo com o art. 7º, tal compromisso só poderia contar em caráter voluntário com os sindicatos, famílias e pessoas físicas/jurídicas que se mobilizarem para a melhoria da Educação Básica. Em outras palavras, afasta da sociedade civil a responsabilidade cívica e ética de avaliar a qualidade de seu próprio processo educacional. Já no art. 8º, o MEC reafirma que as escolas públicas só receberão assistência financeira da União, mediante o critério da “produtividade”.
Enfim, podemos deduzir que os decretos 6.094/2007 e 6.096/2007 apostam firmemente na gestão dos resultados, ainda que não haja recursos e condições de trabalho equivalentes para se chegar a tal meta. Repete-se aqui o que já se fazia durante o período da Ditadura Militar, i.e., uma extremada racionalização de recursos humanos e físicosd+ aposta na polivalênciad+ e evidências estatísticas que demonstrem, ainda que em valores absolutos, de que as taxas de evasão e repetência decresceram. Corremos o risco de “assistirmos” a implementação de um projeto formacional que desqualificará cada vez mais o trabalho docente. Uma IFES pouco atraente do ponto de vista formacional, condenará o ensino superior público ao seu desaparecimento e à integração plena à lógica privatista. Saibamos, então, reconhecer os limites de tal reforma e o seu impacto no ensino público em todos os seus níveis.