As principais lutas do século 21 não possuem fronteiras de esquerda ou direita – e n”ão é diferente na universidade. Vivemos na sociedade da informação e do conhecimento, a qual se nutre tanto da educação básica de excelência, quanto da produção de idéias e de tecnologias de excelência. Nesse contexto, debater se é melhor uma universidade de esquerda ou de direita parece algo fora de lugar. Os defensores de projetos de esquerda ou de direita para a universidade pública não pensam tanto em servir ao País real como um todo, mas em atender aos interesses setoriais dos atores de sua preferência ideológica.
Politizar a universidade pública em termos ideológicos de esquerda e direita é o pior serviço que se poderia fazer ao povo brasileiro que a sustenta com sua tributação. Politizar a universidade é dividir esforços e colocar pedras no caminho de um verdadeiro debate sobre o que o País realmente existente espera de nós – professores, alunos e servidores – no longo prazo. Pergunto-me, por exemplo, se a disponibilização de recursos para a educação e a boa gestão dos mesmos é algo que deva ser pensado de forma associada às idéias de esquerda ou de direita. Acredito que não.
Coloquemos as coisas de outro modo. Entre 1977 e 2004, os Estados Unidos registraram 1,631 milhão de patentes, contra 538 mil do Japão, 210 mil da Alemanha, 55 mil da Coréia do Sul e 1,6 mil do Brasil. Isto é, que um país pequeno como a Coréia do Sul gera uma tremenda renda por direitos de propriedade intelectual (renováveis), enquanto Brasil e outros países de América Latina precisam atacar ferozmente seus recursos (não-renováveis) para produzir riqueza. Os países que mais investem em educação são, obviamente, os que mais produzem patentes e cientistas capacitados. Mas a importância desses investimentos não deve ser adjudicada à circunstância de serem economias poderosas. Nem sempre uma coisa segue a outra: o Brasil, embora estando no seleto clube das 12 maiores economias do mundo, não por isso investe pesado em pesquisa e desenvolvimento tecnológico. O contrário é mais verdadeiro. Os países que investem pesado em pesquisa e desenvolvimento se convertem inexoravelmente em economias fortes.
No Brasil, falta um projeto de universidade pública que atenda às necessidades da Nação. Comparemos, por exemplo, o Brasil com a China. Nesse país, apesar de sua população ser numerosa e em grande medida pobre (a classe média da China é proporcionalmente menor que a do Brasil), a quantidade anual de engenheiros que se forma representa 38% de seu total geral de diplomados universitários, enquanto, no Brasil, os engenheiros chegam apenas aos 6% do total. Como se deve interpretar esse dado? O caso brasileiro é exemplo de política de esquerda ou de direita? Do mesmo modo, o que faz a China é de esquerda ou de direita? A coisa não passa por aí. Na China, o Estado financia em grande parte suas universidades, mas também estabelece as metas em função das necessidades de desenvolvimento do país no longo prazo. Enquanto isso, no Brasil, cada universidade pública estabelece suas metas como melhor entendem seus órgãos colegiados. A politização das universidades públicas entra por essa janela. A comunidade acadêmica deve refletir e decidir sobre os melhores meios para atender às metas que sejam fixadas pelo Estado para o desenvolvimento econômico, social e cultural do País. Mas não pode ser atribuído à universidade o direito de decidir o que é melhor para o País. Se o Estado se omite, a universidade se politiza indevidamente. É exatamente isso o que estamos vivendo hoje no Brasil.
A falta de projeto para as universidades por parte do Estado brasileiro leva os estudantes a ocuparem reitorias em defesa do que entendem ser seus interesses setoriais, aos funcionários a fazerem greve pelo que também entendem sejam seus interesses setoriais, e aos professores a discutir se os candidatos à reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) são de direita ou de esquerda. Na escolha de reitor para uma universidade pública, o que está em jogo é a capacidade do candidato de maximizar os recursos humanos e materiais existentes em função do País real como um todo. O que está em jogo é o mérito acadêmico e administrativo de cada candidato e não suas idéias políticas para o que deveria ser o País no futuro. Alguém se importa com as idéias políticas de um bom cirurgião, de um bom jogador de futebol ou de um bom policial? Do mesmo modo, o que se espera de um reitor é que seja um bom reitor e não um homem de esquerda ou de direita.
A autonomia foi outorgada historicamente às universidades para preservá-las dos avanços do Estado, em função de interesses conjunturais dos grupos governantes, contra o necessário exercício da liberdade acadêmica dos professores. Mas, no Brasil, embora essa liberdade se encontre preservada, nos últimos anos, a autonomia não tem ajudado a universidade a operar as necessárias reformas e ajustes de sua proposta de ensino e pesquisa. A universidade pública ficou presa à rede de interesses econômicos corporativos e paradigmas ideológicos caducos que se amparam no suposto exercício democrático de sua gestão para defender as posições adquiridas dos que já estão dentro, obturando uma representação mais universal, que inclua os interesses dos que estão fora (não apenas dos alunos potenciais, mas do povo em geral, que espera que a universidade atenda ao desenvolvimento do País real).
O democratismo tem permitido a utilização do conceito constitucional da “gestão democrática do ensino público, na forma da lei”, para fins corporativos. Na maioria das universidades federais, por exemplo, na hora de escolher reitores ou diretores de centro, produz-se um curioso esquecimento da parte que diz “na forma da lei”, para introduzir uma representação corporativa que desqualifica a essência da instituição universitária. Parece não importar a ninguém que a forma da lei estabelece que os 70% do peso da eleição do reitor descansem no voto dos professores. Na hora da eleição, o democratismo politizado das esquerdas e das direitas exige que a representação seja tripartite entre professores, alunos e servidores técnico-administrativos, ou mesmo por voto universal (de acordo com a fórmula “um homem, um voto”), com o qual todos se igualam, dando assim a chance absurda de que o peso dos alunos calouros seja maior que a do corpo docente.
A democracia é um regime político de virtudes inocultáveis. É o melhor regime possível para os cidadãos escolherem seus governantes. Mas as regras que se aplicam à forma de governo de uma nação devem aplicar-se às restantes instituições da sociedade? O democratismo ideologizado se traduz, precisamente, na intenção de levar para as restantes instituições da sociedade o que vale para a escolha dos representantes políticos. Quando se pretende “politizar” a família, por exemplo, se está querendo dizer que a “autoridade” deverá surgir da maioria (geralmente dos filhos), contra a minoria dos pais? Ser democrático implica também, por acaso, que na empresa mandem os empregados e nas forças armadas, os soldados? A aplicação universal do princípio da democracia a todas as instâncias da sociedade, antes de aprofundar a mesma, levaria a anarquia à sociedade como um todo. Levaria ao esgotamento das forças da Nação por meio da tomada de decisões por parte daqueles menos preparados para tomá-las. Mas isso é precisamente o que parecem querer os que levantam a bandeira da politização, em termos de esquerda e de direita, da campanha para reitor, impedindo que a universidade opere as reformas que a sociedade precisa e se coloque a serviço do País real.