O Boletim da Apufsc publica mais uma parte da entrevista concedida pelo professor Raul Güenther ao historiador César Félix em 10 de outubro de 2005 como parte do trabalho de levantamento da memória histórica do Movimento Docente da UFSC.
Este encarte traz ainda uma nota de agradecimento da esposa de Güenther, Ane Girondi, e o registro fotográfico do culto em memória do professor, realizada na última-segunda-feira, dia 6, no templo ecumênico da UFSC.
Apufsc – Como se deu o processo de democratização na UFSC?
Raul Güenther – Foi durante a gestão do professor Stemmer que nós promovemos uma ampla luta pela democratização da universidade, que estava em sintonia com a luta pela democratização do país. Porém, isso se refletiu em uma luta específica dentro da universidade, que era a eleição para chefe de Departamento e, um pouco depois, a eleição para diretor de Centro. Mas, repito, primeiro foi a eleição para chefe de Departamento e a nossa conquista foi, inicialmente, muito parcial. A luta era tão difícil que nós propusemos que o chefe de Departamento fosse eleito a partir de uma lista tríplice, elaborada pelos departamentos e o reitor nomeava quem ele queria. Aí nós reivindicávamos que o primeiro da lista fosse o escolhido.
Apufsc – E a eleição aconteceu…
Raul Günther – Sim, fizemos a eleição em todos os departamentos e foram nomeados alguns primeiros e alguns segundos colocados. Isso aconteceu durante a primeira gestão do Maciel, em que ele era presidente da Apufsc e eu vice. Foi a primeira gestão, marcada por uma atividade intensa do Conselho de Representantes. Havia reuniões com representantes de toda a universidaded+ funcionava muito, muito bem. Nós fizemos essa eleição e começou a ocorrer em um Departamento, no outro… Outros também começaram a fazer. Isso foi um passo importantíssimo para a democratização da universidade.
Apufsc – E a eleição para diretor de Centro?
Raul Güenther – O passo seguinte foi a eleição para diretor. Nós organizamos a eleição para diretor e ele era escolhido através de uma lista sextupla.
Apufsc – Por que não a lista tríplice, como no Departamento?
Raul Güenther – Porque era a regra do jogo, a regra que estava no estatuto da universidade. Então fizemos um processo de eleição direta e em todos os lugares. Nós tínhamos combinado o seguinte: a eleição era para diretor, vice-diretor, representante do Centro no Conselho Universitário, suplente, representante do Centro no Conselho de Pesquisa, que existia na época, e suplente. Essa era a nossa lista sextupla.
Apufsc – Votava-se na chapa inteira?
Raul Güenther – A votação não era em chapa. Houve votação separada, mas os seis que fossem escolhidos comporiam a nossa lista sextupla com o compromisso de que o representante no Conselho Universitário que fosse indicado não aceitaria.
Apufsc – Então só aceitaria quem? O que entrasse como candidato a diretor?
Raul Güenther – Exatamente. O que tivesse sido eleito como diretor. Agora, veja só o que aconteceu. Aqui tem um fato histórico, que é o seguinte: nós fizemos a eleição e a mobilização foi tanta que nós ganhamos a eleição – eu digo ganhamos porque eu também fui eleito. Você imagina, eu com 27 ou 28 anos fui eleito o representante do Centro Tecnológico no Conselho de Ensino e Pesquisa da universidade. Fiz parte da lista sextupla e todos nós fomos nomeados e exercemos os mandatos. O reitor não teve coragem de interferir. Ele não indicou ninguém.
Apufsc – E quem era o diretor de Centro?
Raul Güenther – Longuinho da Costa Machado Leal. Foi professor aqui da Mecânica, o vice foi o professor Jairo da Elétrica. Exercemos os mandatos. Porém, nem tudo foi igual ao CTC. No CFH, por exemplo, fizemos a mesma coisa e nenhum foi nomeado porque o Conselho Departamental – algo como o Conselho de Unidade hoje em dia – não referendou a lista. Aqui no CTC, nosso Conselho referendou a listad+ no CFH, o Conselho não referendou a lista. Quer dizer, o nível de conservadorismo era grande não apenas na direção da universidade, mas também nos conselhos. Era muito sentido isso. Eu me lembro de dois lugares onde a eleição não foi respeitada. No CFH e no CSE – naquela época não tinha o CCJ, era tudo um centro só.
Apufsc – Professor Raul, é notório o esvaziamento de professores nas assembléias e a falta de interesse dos professores pelo sindicato nos dias de hoje. Porém, os problemas continuam a existir e o ataque ao sistema público continua. O que aconteceu? Os professores perderam o interesse em defender seus direitos? Por que mudou tanto a relação dos professores com o Movimento Docente? Fale um pouco sobre as diferenças existentes, ao seu ver, entre o Movimento Docente do início dos anos 80 e o de hoje.
Raul Güether – Primeiro, a universidade é estruturalmente diferente hoje. Nós que fizemos o Movimento Docente naquela época, entramos na universidade e aprendemos logo que tínhamos que nos juntar porque havia um adversário em comum em todos os centros, em todo o campus, que era a ditadura. Aqui representada por quem? Pelo reitor. E não estou dizendo que o reitor é um ditador. Eu quero dizer, que isso fique claro, que ele encarnava isso e isso era uma coisa que se espalhava por todo lugar: chefe de departamento etc. Você se sentia acuado, não tinha espaço para respirar – pelo menos era a sensação de muito gente. Isso nos juntou, nos juntou através do Movimento Docente.
Hoje em dia você tem o quê? Os professores, para entrar aqui, tem que ter feito doutorado. E que não se esqueça, isso foi a nossa conquista da carreira, nós que elaboramos uma carreira. Isso mudou estruturalmente a universidade. Por quê? O estudante faz a graduação, aí tem que fazer o mestrado. No mestrado, durante dois anos, aprende um monte de coisas. Entre elas, duas: trabalhar sozinho e obedecer. Aí ele vai para o doutorado onde aprende um monte de coisas. Essencialmente, repete-se a aprendizagem: trabalha sozinho e obedece. Depois de seis anos você quer que o sujeito faça concurso, entre aqui e chegue à conclusão que ele tem que trabalhar junto com os outros? Ele não vaid+ ele vai continuar trabalhando sozinho.
Ele está domesticado. Se ele não trabalhar sozinho ele vai se encaixar em algum grupo de pesquisa, que faz concurso mais ou menos dentro disso e entra pronto para obedecer. Ainda bem que depois de alguns anos ele vai descobrir que não é assim. Às vezes leva cinco, seis, até 10 anos para ele descobrir que tem que se juntar com os outros para poder ter conquistas sindicais mínimas. Mas primeiro a estrutura de formação forma um sujeito individualista, que não está voltado para o coletivo. Eu acho que o Movimento Docente não conseguiu enxergar isso, não sabe conversar com esse pessoal e classifica essas pessoas como conservadoras. Elas não são conservadoras. Tem os conservadores, é evidente, mas nem todos são conservadores. Eles estão em ritmo diferente.
Apufsc – No tempo de vocês era mais fácil?
Raul Güenther – Não. Não era mais fácil. Nós tivemos que aprender qual é a categoria que nós tínhamos. Lembro que o professor Célio Espíndola fez um estudo sobre as questões trabalhistas no Brasil e vimos que as condições eram completamente disformes, era uma confusão. O Célio estudou e nós ajudamos, porque o Célio não gostava de fazer a redação final das coisas, mas era ele que destrinchava tudo. Estudamos quem era essa categoria para formular as reivindicações que nós queríamos. Esses 48% que você vê como nossa primeira reivindicação salarial não saíram do nadad+ surgiram desse estudo, que levou muito tempo para ser feito. Eu acho que o movimento docente hoje não tem a paciência para estudar e para entender qual é essa categoria que temos, para entender como é que esse pessoal funciona, para que a partir daí a gente possa trazer as pessoas para essa discussão.
Você pode me dizer: “mas é mais difícil”. É mais difícil porque você não tem um adversário comum ou ele está escondido! Está por trás dos biombos e compete ao sindicato tirar esses biombos e mostrar o que está acontecendo. O sindicato não está conseguindo fazer esse papel. Temos que entender como funcionam as engrenagens por dentro, temos que entender a universidade de hoje e o que acontece hoje. Basta ver um exemplo de uma característica estrutural na categoria: os professores são pesquisadores do CNPq – se não são, querem ser. Até porque isso é uma coisa importante no currículo, agrega alguma coisa no salário. Talvez não seja a coisa mais importante, mas agrega a possibilidade de se conseguir verba para o projeto. Isso implica nas condições de trabalho na universidade, pois é uma coisa difícil de aceitar, mas vou falar: a universidade como instituição para mim não existe, não dá condição de trabalho, não dá nada – você que se vire. Então os professores fazem isso, correm atrás…
Estou fazendo essa declaração apenas por uma razão: porque já tem 21 anos que eu não sou dirigente. E eu, durante muito tempo, evitei fazer a crítica porque você faz uma crítica e muitas pessoas logo te dizem: “é, na tua época é que era legald+ agora os caras não sabem fazer”. Usam isso como desculpa para não participar. Sempre falei isso para as pessoas, faço essa análise há algum tempo, tenho discutido, mas nunca falei publicamente nem gravado. Estou tornando público porque eu acho que é preciso dar uma sacudida nisso tudo. Esse movimento foi feito, claro, dentro de uma conjuntura, mas com muito trabalho, com muito empenho das pessoas e com o empenho de procurar entender. Você acha que foi fácil derrotar as autarquias especiais e depois a autarquia das fundações? Esse movimento fez uma coisa excepcional. Nós tínhamos dois tipos de universidade: as fundações e as autarquias. Os governos queriam transformar todas as autarquias em fundações e nós conseguimos transformar todas as fundações em autarquias, na prática. Isso é uma coisa excepcional. Certa vez, fui na Assembléia de professores onde a minha tarefa era convencer os professores que ganhavam mais do que a tabela proposta a aceitarem baixar seus salários. Olha que situação difícil. Mas tínhamos que acabar com as disparidades salariais que existiam. Tínhamos que fazer, discutir e mostrar a importância política de unificarmos o movimento.
Apufsc – Isso aconteceu?
Raul Güenther – Aconteceu em Cuiabá. Na Assembléia em que era para propor o aumento do salário, mandavam o presidente. Quando era o contrário, baixar salário, mandavam o secretário. E eu fui discutir com as pessoas. Não era uma tarefa simplesd+ você tinha que ter uma reflexão forte e profunda sobre o assunto, tinha que ter um trabalho por trás disso, entende? E o trabalho hoje, qual é? Eu acho que é entender mais o que é a universidade. Não dá para simplesmente dizer: “os professores não vão à assembléia porque são conservadores”. Não é verdade. Como é que você vai fazer um movimento sindical se você não tem pessoas que acham que podem conseguir a adesão de outros colegas. Aí eu rotulo: “não, esse aqui é um bando de conservadores e eu não converso com eles”. Estamos todos mortos se fizermos assim, porque aí não tem o que fazer.
Eu acho que o pessoal tem medo de discutir, mas você precisa discutir. É discutindo com as pessoas que você tem a oportunidade de expor as suas posições. Se o pessoal não vai aceitar, aí você tem que pensar na sua intervenção. Digo isso porque acho que ouvir o outro falar o contrário de você vai exigir que você olhe quem você é. É um espelho e é aí que ele vai ver que ele não tem aquela capacidade de convencer o sujeito. O problema é que ninguém quer aceitar isso.