Pesquisadores alertam para riscos de parcerias entre universidades e empresas de tecnologia

Maior preocupação é com privacidade de dados e com autonomia; grupo de professores enviou carta às instituições com alternativas

Com a necessidade de colocar em curso o ensino remoto emergencial, universidades públicas de todo o País passaram a firmar (ou ampliar) parcerias com grandes empresas de tecnologia. A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), por exemplo, está avaliando o uso de ferramentas fornecidas gratuitamente por gigantes como Google e Microsoft — algumas delas já em fase de teste. 

Mas será que elas são mesmo gratuitas? Um grupo de pesquisadores à frente do projeto Educação Vigiada,  que estuda os impactos dessas plataformas privadas na educação pública brasileira, defende que não. Preocupados com o uso indevido de dados e com as implicações futuras dessas parcerias, os professores enviaram uma carta-proposta às instituições públicas de ensino superior.

O documento faz um alerta sobre o custo implícito da utilização desses serviços privados dentro da educação pública. A carta foi entregue ao presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), João Carlos Salles Pires da Silva. Na UFSC, ela foi destinada à chefia do Centro de Ciências, Tecnologias e Saúde do Campus Araranguá e ao Centro de Ciência da Educação (CED).

Para o professor do Departamento de Tecnologias da Informação e Comunicação da UFSC (campus Araranguá) e um dos signatários da carta-proposta, Vinicius Faria Culmant Ramos, uma das questões-chave é a privacidade dos dados e a autonomia universitária. Ele lembra que, uma vez logado no serviço, todo o comportamento do usuário poderá ser  transformado em dados que posteriormente serão convertidos em informação. 

Mesmo que sejam anônimos e que as empresas garantam que não farão uso comercial, os dados podem ser monetizados de diversas formas, explica Ramos, relembrando os casos Snowden, Cambridge Analytica e outros amplamente divulgados pela mídia internacional. “Desde o processamento dos seus e-mails para apresentar publicidade, o uso dos nossos dados de pesquisa — que podem ser sigilosos, ou até estratégicos no avanço da tecnologia do país — até um estado de vigilância constante sobre o que estamos fazendo”. 

O professor também alerta sobre a segurança dos dados, uma vez que, ao assinar os termos de uso, os usuários delegam às empresas a responsabilidade pela segurança deles. “Ou seja, é um paradoxo: queremos ter segurança e privacidade mas é a própria empresa a responsável por garantir isso. E quem dentro das universidades garantirá essa segurança? Esses dados saem da universidade e vão para onde?”, questiona o professor. “Vale lembrar que não somos contra o progresso, o lucro das empresas e nem contra o uso da tecnologia. O que a gente precisa é ter uma discussão ampla sobre o custo implícito nessa utilização”, completa.

Cenário nacional

De 65 universidades federais analisadas, 39 têm o Google como provedor de e-mail e outras três (UnB, UFABC e UFPR), a Microsoft. O mapeamento foi feito pela Educação Vigiada.  

A falta de criticidade de gestores das instituições surpreendeu os pesquisadores. “Com gente muito conhecedora de tecnologia, os conselhos nas universidades [parecem] muito tranquilos com essa relação sendo estabelecida, como se ela fosse só um benefício em termos de economicidade e parâmetros técnicos. Isso nos assustou um pouco”, diz o professor Tel Amiel, um dos fundadores da Educação Vigiada e coordenador da Cátedra UNESCO em EaD na Universidade de Brasília. 

Apesar de Google e Microsoft disponibilizarem ferramentas gratuitas para instituições de ensino, a conta não fecha, diz o educador. “Essa é a primeira e grande pergunta: como pode um serviço tão essencial e complexo, como sistemas de videoconferência e e-mail, ser grátis?”, questiona Amiel, reforçando que se tratam de empresas, não fundações benevolentes. “A pergunta muito básica, com a qual a gente se assusta quando os gestores não fazem, é: sabendo que alguma coisa está sendo transferida, o que é essa coisa exatamente?”.

A questão jurídica por trás dessas relações também é motivo de preocupação. “Estamos coletando os dados, então ainda não posso dizer isso categoricamente, mas já temos vários exemplos de adesões que estão sendo feitas sem um contrato. Eles [universidade e empresa] simplesmente estabelecem um termo, que estão chamando de ‘carta de intenções’. É uma aberração jurídica”, afirma Amiel. 

Na UFSC, caso seja aprovado pelo Comitê de Governança Tecnológica o uso do G Suite para Educação, será firmada uma parceria entre o Google e a Universidade. Como não há recursos envolvidos, não se trata de uma contratação e não é necessária licitação. O secretário de Planejamento Fernando Richartz assegura que “todos os aspectos que envolvem a segurança da informação são tratados nesse comitê, que foi criado justamente para não ter qualquer decisão dessa natureza sem discussão ampla”.

Consequências a longo prazo

Quando a instituição passa a usar as ferramentas de tecnologia de empresas privadas,consequentemente ocorre uma terceirização de serviços de comunicação e armazenamento de dados da comunidade acadêmica. A curto prazo, esse movimento pode parecer interessante por possibilitar que os recursos, antes investidos nesses serviços, possam ser realocados para outras áreas — além da comodidade e praticidade, comumente destacadas. Mas quais as possíveis implicações a longo prazo?

“A questão da privatização começa quando dizemos que não temos recursos suficientes, então precisamos terceirizar para que uma empresa nos permita usar o serviço dela gratuitamente. E, na verdade, estamos tentando mitigar um problema, e não estamos discutindo quais são as causas dele, como a falta de investimento em recursos tecnológicos próprios”, diz o professor Vinícius Ramos.

A preocupação é que seja firmada uma relação de dependência com as plataformas. “Não teremos mais autonomia de mudar do Google Drive para um serviço LibreOffice, por exemplo, pois já estaremos dependentes, só saberemos usar um único software”, afirma Ramos.

De acordo com o Educação Vigiada, a maioria das Universidades Federais utilizam o Moodle, um software livre de Ambiente Virtual de Aprendizagem, e possuem plataformas institucionais. “Não achamos que isso vai durar muito tempo. A partir do momento que o Google for a plataforma de fato, as pessoas vão sair do Moodle. Vai haver menos apoio institucional e as pessoas vão ter menos razão para manter [esse uso]”, diz o professor Tel Amiel. 

Outro ponto delicado, na avaliação dos pesquisadores, é que professores e estudantes vão transferir a tomada de decisão para os algoritmos. “Cada vez mais vão nos colocando dentro de bolhas, onde só sabemos o que procuramos e o que vemos. Assim como quando eu quero almoçar, que eu vou lá e jogo no Google e ele me diz o restaurante mais próximo — que não necessariamente é o melhor, ou o que eu de fato gostaria —, vai acontecer com o que eu vou ler dentro da minha instituição. Estou estudando cálculo, que livro vou ler? Quem vai me dizer não é mais o professor, mas sim um algoritmo, que vai se basear nos mais vendidos, ou na empresa que pagou mais pelo anúncio do livro X. E isso é diretamente relacionado com tudo o que a gente faz, inclusive nossas decisões políticas”, alerta o professor Ramos.

A questão do controle da empresa sobre a longevidade da parceria também é outra questão a ser considerada. “O que vai acontecer quando elas disserem que o limite de espaço da universidade acabou? O que vamos fazer? Se hoje nosso argumento é o de que não temos espaço, como vamos migrar nossos dados de volta, ou seja, como é que se faz isso daqui a dez anos? É um caminho que pode ser sem volta”.

Ilustração: Mengxin Li

Lei Geral de Proteção de Dados

A transferência de dados entre instituições de ensino e empresas não é devidamente regulada hoje. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) prevê a proteção de liberdades e direitos fundamentais do cidadão, assim como busca garantir a transparência no uso de dados das pessoas físicas pelas organizações privadas. Apesar de prevista para este mês de agosto, a LGPD foi adiada e só deve entrar em vigor em maio de 2021. 

“Adequar-se à LGPD significa ter uma série de camadas de responsabilização das instituições e de escuta forçada, porque você está coletando dados pessoais. [Será necessária] a especificação do que exatamente está sendo coletado, o que vai levar a uma modificação não só dos termos de uso dos sites, mas também das formas que estão sendo feitos os contratos com as universidades”, explica o Prof. Tel Amiel. 

Com a implementação da LGPD, será criada a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, órgão responsável por fiscalizar como as empresas utilizam as informações dos cidadãos. Até lá, ao que tudo indica, as universidades seguem sem uma orientação adequada de como proteger a comunidade acadêmica. 

Alternativas

Como elenca o professor Vinícius Ramos, existem diversas ferramentas de código aberto que poderiam estar sendo usadas para suprir essa demanda, no lugar de ferramentas de empresas privadas. “Escrevemos o documento com propostas de softwares livres, de código aberto, que podem ser utilizados dentro das nossas instituições de ensino, funcionando de maneira federada, com compartilhamento de dados e recursos entre as instituições. É isso que estamos disputando, a implementação dessas ferramentas.”

Na avaliação de Ramos, a implementação dessas ferramentas depende mais de esforço político e preocupação real com os dados da comunidade universitária, do que unicamente de investimento monetário, uma vez que vários dos serviços que a Universidade utiliza já são pagos (como o caso dos anti spam, por exemplo). O professor também comenta que parcerias poderiam ser propostas, afinal, seriam cerca de 45 mil pessoas utilizando a plataforma de código aberto e, consequentemente, dando muita visibilidade para a empresa. 

“Claro que isso vai demandar esforço dentro dos setores de tecnologia, mas a longo prazo teremos muito a ganhar na formação dos cidadãos que estão dentro das universidade. Porque ao delegarmos às grandes empresas as tomadas de decisões de nossas vidas, também estamos perdendo um pouco de cidadania.”

Confira as ferramentas propostas pelos pesquisadores em carta enviada à Andifes. 

Ilana Cardial e Karina Ferreira