A ideia é reforçar, nos futuros profissionais, a importância de se valer o conhecimento científico na hora de estabelecer tratamentos
Os desafios da pandemia de covid-19 e a polêmica em torno da prescrição, por muitos médicos, de drogas sem eficácia comprovada contra a doença devem resultar em algumas mudanças nos cursos de medicina. A ideia é reforçar, nos futuros profissionais, a importância de se valer o conhecimento científico na hora de estabelecer tratamentos.
Relação que pode parecer óbvia, a medicina e a ciência nem sempre andam de mãos dadas. O contraste entre dezenas de estudos científicos mostrando que a hidroxicloroquina não traz melhora para casos graves nem leves de covid-19 e a recomendação recorrente do remédio por alguns médicos tornou isso evidente.
Há um fator de pressão política e também dos próprios pacientes, mas também há muitos médicos que prescrevem com convicção, como alguns deixam claro em vídeos que se tornaram populares na internet e em sites que dizem falsamente haver um tratamento para a doença.
No Brasil e no mundo, entidades de classes e especialistas em educação médica começam a discutir aprimoramentos que talvez sejam necessários para deixar os futuros médicos mais adaptados para lidar com esse tipo de desafio.
“Não é só a hidroxicloroquina, mas a gente tem de insistir no desenvolvimento do pensamento crítico. É importante sempre pensar, refletir sobre o que está fazendo, não só em relação à prescrição de medicamentos. O ensino médico pós-pandemia vai ter de ser aperfeiçoado, e o mundo inteiro está discutindo isso. Os cursos de Medicina após a covid não devem ficar iguais, por melhores que fossem antes da pandemia”, afirma Milton de Arruda Martins, presidente da Comissão de Graduação da Faculdade de Medicina da USP.
Especialista em educação médica, Martins defendeu em eventos sobre o tema na semana passada – conduzidos pela Academia Nacional de Medicina e pelo Instituto Questão de Ciência – que o currículo passe por reformas para valorizar mais, entre outras coisas, a chamada Medicina Baseada em Evidência.
Logo no início da pandemia, alguns estudos pequenos da China e da França, do tipo observacionais, sugeriram que os antimaláricos cloroquina e a hidroxicloroquina poderiam ter efeito benéfico contra a covid-19.
Mas assim que estudos maiores começaram a ser conduzidos, especialmente os do tipo randomizados – com grupo controle e duplo-cego, em que metade dos pacientes aleatoriamente recebe a droga e metade não, sem que cientistas nem pacientes saibam quem recebeu o quê – percebeu-se que o medicamento não apenas não tem efeito positivo, como poderia causar efeitos colaterais cardíacos. Esse tipo de teste clínico é considerado o mais seguro para demonstrar eficácia
Martins afirma se sentir intrigado que muitos médicos ainda prescrevam o remédio. “Precisamos entender se é um problema de formação ou de contexto. Provavelmente é uma coisa complexa, com um pouco de cada coisa, mas acho que tem de ser reforçado o papel da formação científica, de como as evidências sobre medicamentos se constróem e quando que um determinado medicamento tem suficiente comprovação para ser recomendado para a sociedade”, diz o médico.
“O ensino das evidências já está presente nas diretrizes curriculares, mas pode e deve ser aprimorado. Toda a polêmica com o uso de medicamentos contra a covid-19 nos mostra que temos de reforçar a formação desse ponto. E não só na graduação, mas precisamos também avançar na formação continuada dos médicos”, concorda Nildo Alves Batista, presidente da Associação Brasileira de Educação Médica.
Leia na íntegra: Estadão